Juliana: Olá, este é mais um episódio do Dazumana.
Leyberson: Aos poucos a terra preenche o quadro que antes era vazio, as paisagens se formam e plantas nascem, vem a água e logo uma mão de massinha escreve o título do curta: Òpárá de Òsùn: quando tudo nasce, de Pâmela Peregrino. Vemos o boneco modelado para animação Stop Motion e nos surpreendemos.
Juliana: Já foi o tempo em que a animação podia ser entendida somente como história para crianças, o filme que descrevemos fala sobre Oxum a orixá das águas doces. Outro curta que trabalha com a técnica de Stop Motion é o Mãe dos Netos de Isabel Noronha e Vivian Altman sobre uma família impactada por mortes decorrentes do HIV e AIDS em Moçambique. Os dois títulos representam a diversidade de cinema negro, e para conversar sobre o uso de animação nesse cinema convidamos Edileuza Penha de Souza para conversar. Olá, Edileuza, tudo bem?
Edileuza: Olá Ju, olá Ley… muito bom estar aqui com vocês.
Leyberson: Nós que ficamos felizes aqui com a sua presença e dentro da nossa parte formal ao fundo a gente já escuta o som dos anjos que é o momento em que a gente lê um pouco do currículo da convidada. E no caso da Edileuza vou contar que ela é Doutora em Educação pela Universidade de Brasília, é mestre em Educação e Contemporaneidade pela Universidade do Estado da Bahia, e graduada em História pela Universidade Federal do Espírito Santo, desde 2006 desenvolve pesquisas na área de cinema com ênfase no cinema negro no Brasil, nos dois últimos livros que participou com artigos são: Empoderadas: Narrativas Incontidas da Renata Martins e Cinema Negro Baiano da Jamile Coelho. A Edileuza é cineasta e tem em sua trajetória filmes como, Filhas de Lavadeiras de 2019, Mulheres de Barro de 2014 e Teresa de 2013. Ela trabalha com educação atuando nos temas: educação escolar, quilombolas, arte e cinema africano e diaspórico, cinemas e cineastas negras, educação das relações étnico-raciais, formação de professores de acordo com a lei 10.639, e será que faltou mais alguma coisa, Edileuza?
Edileuza: Não, obrigada pela apresentação. Eu não sou diretora do filme Teresa… Teresa foi dirigido por Lilih Curi que é uma diretora também da Bahia, mas eu digo que é o meu filme de atriz única, onde eu sou atriz, roteirista, fiz direção de arte, atuei na produção, enfim. E esses dois livros citados também são de duas cineastas negras, Renata Martins em São Paulo e Jamile Coelho que organizou esse livro com outras pessoas… que é a nossa principal animadora hoje, que está na Bahia.
Juliana: Eu queria saber um pouco da sua experiência nos filmes e entender se teve influência de um para o outro, vamos dizer do filme para a pesquisa, da pesquisa para o filme?
Edileuza: Então Ju, eu entrei no cinema a partir da pesquisa, eu sou professora, atuei parte da minha vida na educação básica onde eu sempre trabalhei com filmes, assim como professora de história sempre utilizei filmes como instrumento didático. É a partir desse trabalho que, em 2016… eu venho para Brasília em 2005 para trabalhar com a implementação da Lei 10.639, que é a primeira lei do governo Lula que torna obrigatório o ensino de história e cultura africana na Educação Básica, e aqui em uma conversa no Seminário da Unesco já não lembro se foi em 2005 ou 2006, uma conversa com a também professora Rosane Borges sobre filmes que a gente usava em sala de aula e como usava esses filmes, nasce daí o que viria a ser uma coleção, que é o Negritude, Cinema e Educação: caminhos para implementação da Lei 10.639, essa coleção que são três volumes é basicamente de filmes protagonizados por pessoas negras e receitas mesmo, receita de bolo… de como professores das mais diversas áreas podem usar esse filme em sala de aula, é bom lembrar que naquele momento a maioria dos filmes ainda protagonizados por pessoas negras eram dirigidos por pessoas brancas. A gente tem o Bróder do Jeferson De, a gente tem filmes do Joel Zito Araújo.
Joel: Meu nome é Joel Zito Araújo, eu sou cineasta. Cinema é produto de rede de relações, para fazer cinema você precisa de dinheiro, você precisa de rede para poder obter financiamento, você precisa de rede para poder se integrar às pessoas, conhecer as suas intenções, saber se tem competência para fazer aquele filme, etc. E nossa maioria, o perfil de quase todos nós é o mesmo sabe, o perfil de pessoas como eu… mãe empregada doméstica, pai motorista de caminhão, entendeu. Então nós já somos vencedores pelo fato de termos chegado na universidade, então isso é um lado da dificuldade da nossa possibilidade de formação e de estar nessas redes e a outra dificuldade é uma dificuldade pelo tema Tabu que a gente trabalha, então fazer um filme sobre Cartola, fazer um filme sobre Pixinguinha não é problema nenhum, mas fazer um filme sobre racismo no Brasil, sobre exterminação de jovens negros na periferia, que você vai necessariamente criticar a polícia, criticar o narcotráfico. Então isso é problema para conseguir financiamento, discutir o racismo em qualquer um dos segmentos da sociedade é um problema.
Edileuza: Mas naquele momento, sobretudo no Brasil a gente ainda contava nos dedos os filmes dirigidos por pessoas negras e também naquele momento era muito importante para mim que os filmes apresentados fossem fáceis de encontrar na locadora, olha o quanto isso é antigo falando ainda de locadora, com essa coleção eu começo a receber inúmeros convites para poder falar sobre cinema e sobre cinema negro e educação, havia da minha parte uma recusa muito permanente de aceitar esses convites. Até que em 2007 em ocasião do segundo volume da coleção, o primeiro foi em 2006, o segundo em 2007 e o terceiro volume embora ele tenha ficado pronto em 2018, ele só foi publicado em 2014 quando… não era coleção ainda, era os dois volumes e foram selecionados para o Premier dos Professores. Bem, então em 2007 em uma feira do livro aqui no pátio Brasil, uma pessoa me diz que ao ler o artigo sobre a Cor Púrpura ela tinha chorado muito porque ela tinha visto o filme mais de 50 vezes e ela nunca tinha percebido tantos detalhes no filme e que ela tinha chorado tanto ao ler o artigo que ela meio que estragou o livro, eu achei isso muito impressionante. No dia seguinte, eu recebo um outro convite para falar sobre o Cinema Negro, e de novo já recusando como fazia sempre e indicando outras pessoas, eu pensei cara depois do que eu ouvi ontem não posso mais ficar nesse lugar tão confortável e topei. E aí também, que em 2007 eu ingresso como professora na Universidade de Brasília, e aqui comecei de fato a aprofundar pesquisas sobre o cinema até o desejo de querer realizar, mas assim, o meu lugar no cinema nasce da pesquisa.
Juliana: Edileuza, você negava os convites por que você não sentia preparada, tinha algum obstáculo, o que era?
Edileuza : Eu não me sentia apta a falar de um tema em que eu era apenas uma curiosa, eu sempre gostei de cinema… cinema sempre foi um lugar de refúgio na minha vida e ainda é, assim se eu estou triste eu vou para o cinema, se eu estou feliz eu vou para o cinema, a semana que eu não vou ao cinema a semana não fica completa. Mas eu não me sentia nem um pouco habilitada para falar sobre o tema que era desconhecido para mim, eu só gostava de ver filme, estudar cinema vem a partir desse momento. Mesmo o Negritude, Cinema e Educação era isso, contar para os professores como você pode utilizar um filme e eu estava falando da minha experiência como professora, ora o Kiriku e a Feiticeira eu uso assim como professora de história, eu faço isso, isso e isso. Mas também, você como professora de ciências pode pensar a partir daqui, dali… o professor de matemática pode pensar isso, eu vejo por exemplo, que embora o Dogma Feijoada do Jeferson De e do Noel de Carvalho já tivesse sido publicado no ano 2000.
Jefferson: Dogma Feijoada são sete itens, são sete leis que foram criadas há mais de 10 anos atrás e foi fruto de um estudo de iniciação científica… uma bolsa de iniciação científica da FAPESP e que me orgulho muito de falar tudo isso, aí eu escrevi sete leis do que eu chamaria de gênero de Cinema Negro. Para o Cinema Negro existir tem que respeitar aqueles sete itens. Primeiro item era muito claro ou muito escuro que era que o diretor tinha que ser negro, e hoje 10 anos depois eu vejo que é o item mais importante, para que o Cinema Negro exista no Brasil, ele tem que ter um negro no comando e o comando hoje de um filme muitas vezes ele é delegado ao diretor. O segundo: é que o protagonista tem que ser negro ou negra. Terceiro mandamento: o filme tem que se referir a cultura negra brasileira, neste sentido mais geral. O quarto ponto: fazer filmes exequíveis, ou seja, se você tem 1 milhão faça o filme com 1 milhão, se você tem 10 mil reais faça o filme com 10 mil reais, se você tem 10 reais compre um cartão, tire fotos e publique na internet, e se você não tem nada dê um sorriso para alguém que já vale… mas fazer filmes exequíveis, não é. Eu percebi que muitos realizadores negros tinham começado o filme, mas nunca tinham conseguido acabar um filme, porque talvez tivessem pensado de uma maneira equivocada que sua produção… então tinha muito ciúmes encalhado. O quinto mandamento: heróis ou bandidos estão proibidos. O sexto mandamento: personagens estereotipados, negros ou não, também estão proibidos, e usei essa palavra proibidos mesmo, para enfatizar de que era proibido. E o último mandamento: é privilegiar o negro comum brasileiro.
Edileuza: É um dos primeiros livros que vai pensar o cinema negro e a pegada do Dogma Feijoada é outra, assim, eu falar sobre o histórico do cinema negro no Brasil, mas pensar este lugar como instrumento para a educação não tenho dúvida de que a coleção Negritude, Cinema e Educação foi pioneira.
Leyberson: Quando você trabalha Òpárá de Òsùn, ele traz algumas questões simbólicas como o próprio conceito do Candomblé, o papel do Candomblé dentro dessa relação política educativa que eu queria que você contasse para gente e também contasse como trazer essa temática dentro de um processo de cinema, que é uma animação em Stop Motion.
Edileuza: Eu acho que a primeira questão é pensar que a animação negra e que a gente está chamando de Cinema Negro de Animação, ele tem esse papel político, social e afetivo de contar histórias e aí quando a gente fala de contar histórias a gente está de novo falando de histórias protagonizadas por personagens negros, a gente está dando vida a esses personagens. A técnica para pensar o cinema negro de animação é o que menos importa, o Stop Motion é apenas uma delas, mas é de como essa história possibilita criar outros imaginários… como crianças negras ou não negras vão ver esse filme e a partir daí vão criar um imaginário positivo sobre si, sobre religiosidade no momento em que a gente vive o racismo religioso, a gente vive em uma sociedade estruturalmente racista e com uma simples animação você possibilita questionar tanta coisa, possibilita ver o outro com um olhar mais digno, mais humano, mais igual, eu acho que essa é a nossa perspectiva. Assim, pensando análise fílmica desse filme, desse lugar de contar outras histórias, de possibilitar novas narrativas, novos olhares, novos encontros.
Juliana: Uma coisa que chama atenção no curta é a escolha do bioma, porque uma história sagrada não poderia a princípio passar em qualquer lugar, mas foi territorializada em um espaço específico.
Edileuza: Primeiro escolher o sertão do sul da Bahia assim como vários locais do Brasil que vem sendo danificado de uma forma muito violenta, que os povos originários têm sido expulsos, que o agronegócio vem destruindo esses espaços e tudo que ali nasce. Então, Òpárá de Òsùn tem esse lugar de novos nascimentos.
Paola Odónilè de Mori: Quando Oxum pisou a terra, a vida tocou o mundo, foi água que preencheu de amor, quando Oxum pisou a terra foi que se alcançou a beleza de tudo e a beleza então desaguou felicidade nos corações, quando Oxum pisou a terra e a vida se deu nas árvores, nos animais e nas crianças, o mundo lavado de axé conheceu onde tudo nasce, a benção da criação.
Edileuza: Da responsabilidade que cada um de nós… temos um território e com a territorialidade, foi um filme que teve participação de comunidades indígenas e foi feito dentro de um terreiro, entendendo que essa responsabilidade é de todos, os cuidados com ecossistema, cuidar da natureza é dever de cada um. Então trazer esses elementos para as crianças e os adolescentes, e chamar a atenção dessa responsabilidade que cada um tem sobre a sua territorialidade, sobre o território é fundamental. Então quando a Pâmela junta todo mundo dentro de um terreiro e cada um voluntariamente tem uma função dentro do filme, ela dirigiu, ela pensou na história, mas é um filme extremamente coletivo, passou por muitas mãos.
Leyberson: Todas as pessoas que participaram foram denominadas de autoras e coautores, foi isso?
Edileuza: Sim.
Leyberson: Essa decisão é estratégica? Qual é o sentido dela?
Edileuza: Olha, eu penso que o cinema é arte do coletivo. É impossível pensar cinema sem muitas mãos, claro que a gente sabe também que cinema hegemônico ele tem a figura do diretor como a figura principal, e a gente sabe também que a própria ficha técnica nasce a partir de conquistas, a partir de greve de trabalhadores do audiovisual. Então entende o lugar que cada um ocupa e creditar é só um compromisso, fazer aquilo que a gente acredita que esse cinema negro de animação somente é possível por conta do coletivo… da coletividade, que sem todas essas mãos isso não seria possível.
Leyberson: Quais são os outros cuidados conceituais em uma produção que passa despercebido? Eu queria que você trouxesse essas dicas para gente ou alguns puxões de orelha também.
Edileuza: A primeira coisa, é o respeito aos outros. Fazer cinema hoje no Brasil é um privilégio e sempre foi. Não é à toa que poucos conseguiram fazer e alcançar um título dentro da história do cinema brasileiro. Eu acho que a primeira coisa é o respeito ao outro, e acho que falta muito isso na nossa história pensando a partir do meu lugar de documentarista, por exemplo, eu percebo o quanto as pessoas vão em determinadas comunidades, filmam e não fazem sequer o filme ser entregue lá na comunidade com uma sessão aberta para todo mundo para eles ver… olha aqui o resultado, gostaram, eu sou daquelas que preferem que antes do filme estar pronto, levar um corte do filme para poder ter essa opinião, para saber se está tudo certo, para saber se esse é o caminho. Então eu acho que falta no cinema brasileiro, e eu prefiro falar do cinema brasileiro porque é aqui o meu lugar, é isso, é respeito a quem você filma, ao território que você filma e como você filma. Eu acho que a grande dica é olhar essas pessoas como colaboradoras, elas estão te emprestando o que há de mais sagrado, que são suas memórias, suas histórias… e se apropriar disso sem nenhum retorno é feio para não dizer outra palavra.
Juliana: Teve uma situação que você trouxe da professora Narcimária Correia do Patrocínio, que ela vai falar que a comunicação africana se expressa por diversas linguagens, diversos códigos, dança, canto, petição, dramatização, música, jogos, vestuário, paladar, olfato, tato, coreografia, cenário, ginga, suingue… principalmente nesse curta que a gente está falando, como que essa diversidade de linguagem, essa questão até mais sensorial de como a gente assisti ao filme está presente?
Edileuza: É um mundo que tem ali em tão poucos minutos, o território, o bioma, o orixá, o nascimento de uma criança… são infinitas linguagens e possibilidades que você pode pensar em trabalhar a partir desse lugar, eu não tenho dúvidas de que este cinema negro de animação ele traz esse coletivo, essa grandiosidade, a dança, o canto, o respeito, o cuidado e afetividade… são só alguns elementos, é múltiplo, é um filme extremamente rico. E o mais bacana de tudo Ju é de como esse filme pode ser pensado para o respeito às religiosidades africanas, a gente sabe por exemplo que, todas as religiões têm seus mitos fundadores, no entanto quando a gente fala desses elementos fundadores europeus brancos a gente fala de mitos, e quando a gente fala desses elementos fundadores negros a gente já os coloca no outro lugar, que é o lugar da lenda. Eu sempre pergunto assim: o que lenda e o que é mito? Se eles são as mesmas coisas porque invariavelmente a gente usa uma palavra para expressar branco e a gente usa outra palavra para expressar o preto. Tem alguma coisa que não está certa aí, entender que você pode ter a religião que você quiser escolher, mas que é preciso olhar o outro com o mesmo respeito é o mínimo que a gente pode esperar de cada um. Esse filme também vem muito no sentido de tirar esse lugar da demonização que as religiões afro são vítimas, historicamente são vítimas, e que hoje inclusive, está super na moda terreiros que vem sendo atacados, pessoas que vem sendo agredidas na rua, só pelo fato de estarem usando branco. Eu acho que a gente está vivendo um momento de tanta intolerância, de tanta violência sabe, que esse filme vem como as águas de Oxum para lavar as nossas almas, lavar os nossos corpos, nossas mentes e trazer outras possibilidades trazer essa riqueza de Oxum que é além do ouro, por quê que ouro maior do que a nossa consciência, do que o nosso axé, Oxum como a deusa do amor, como a deusa da riqueza, que ela venha nos trazendo esses elementos… da riqueza, da pureza, da beleza… que é isso que esse Brasil precisa.
Juliana: Edileuza, eu queria saber qual o impacto das pessoas? No artigo você fala um pouco, principalmente crianças e adolescentes assistindo o filme. Como que foi para elas verem essas imagens?
Edileuza: O impacto com crianças e adolescentes têm sido bem bonito, por exemplo, de crianças dentro da escola daquelas de matriz africana que tem vergonha de se assumirem e quando o filme termina a exibição, de serem a primeira dizer: eu sou do Candomblé, eu sou da casa tal, da casa de fulana de tal. Se sentindo extremamente empoderada para esse lugar assim como outras crianças de outras matrizes religiosas que vão compreendendo o quanto é importante respeitar as diferenças e o quanto é importante respeitar o outro e a natureza, porque se entender que nossos corpos fazem parte dessa natureza, sem orixá não existe natureza e sem natureza não existe orixá. Então assim que tudo isso é único, faz parte de um só elemento.
Leyberson: Volto ali com a Lei 10.639 que foi de 2003, se não me engano, e eu lembrei que eu entrei na faculdade em 2003 e em nenhum espaço eu realmente me senti contemplado em entender algo que não faz parte de um contexto, uma família meio católica trazendo sempre conselhos cristãos e etc. E aí, eu pergunto como é que o audiovisual tem ajudado nisso, em termos que de 2003 a 2023 já são quase dez anos de lei?
Edileuza: E não são quase dez, já são quase 20 anos. Eu acho que tem duas coisas, um é que a gente está atravessando um momento neste país e isso inicia em 2016 com o golpe da presidenta Dilma que é de retrocesso, a gente está retrocedendo a um ponto que eu achei que não era mais possível. Eu acho que é preciso pontuar isso para dizer que todas as políticas públicas têm sido dizimadas, e a Lei 10.639 é apenas uma delas. Dito isso, quando a gente não tem a diversidade é ruim para todo mundo, porque o racismo não faz mal só aos negros ele faz mal aos brancos também. Porque uma sociedade mais justa, mais plural, mais harmoniosa, é uma sociedade boa para todo mundo. O problema é que o Brasil como um país escravocrata… falta aqueles que mandam e aqueles que obedecem, por isso incomoda tanto, e a PEC que a gente não pode esquecer disso… que a PEC da doméstica que inaugura o golpe, mas um país escravocrata que sempre teve mulheres negras em suas cozinhas ganhando simbolicamente nada. E a gente está vendo, a mídia está mostrando as pessoas neste momento vivendo em regime análogo à escravidão, estamos falando de mulheres negras, quando o filho… filhos dessas mulheres estão na universidade pública que historicamente sempre foi ocupada pela elite, isso incomoda muito, é por isso que na sua formação você não teve certamente na universidade essas possibilidades, por que o ensino como tudo nesse país é branco e ele só fala de um lado. Então, por exemplo, certamente você sabe… vários países europeus e suas capitais, e muito certamente se eu perguntasse para você três países africanos e suas capitais você faria um engasgamento. E eu estou dizendo que está tudo certo com você, o que está errado é que os países europeus e suas capitais estão na ordem do dia na sala de aula, e os países africanos não. A gente só vê falar da África na época da Copa do Mundo e das mazelas e das misérias, esse é o único momento que a gente fala sobre o Continente Africano. Daí pensar o Continente Africano como o lugar que nasce a medicina, que nasce a matemática, a arquitetura… esse lugar civilizatório ele não existe. Você vê o quanto que as pessoas são contrárias as cotas e o quanto que se tem feito para burlar as cotas, a Universidade de Brasília mesmo, vive hoje cerca de 200 processos de pessoas que tentaram fraudar este sistema, quer dizer que são pessoas criminosas e é deste lugar que essas pessoas precisam ser tratadas. E aí voltando a questão do audiovisual, eu não tenho dúvida nenhuma de que o audiovisual é um instrumento que pode trazer para as nossas vidas, que podem trazer para a sala de aula, que pode trazer para a escola novos olhares e que esses olhares sejam extremamente afetivos. Porque quando a gente olha um filme como Opará de Oxum e a gente não entende nada, que a gente possa entender os elementos… entender um só elemento que o filme está trazendo já é uma grandiosidade. Você no início do programa falou em Mãe dos Netos, que também é uma animação em Stop Motion, quanto que a Kátia e a Vivian que são as diretoras do filme puderam falar sobre as ausências, puderam falar sobre a questão do agravamento da AIDS em uma família, é um documentário que é uma família, que tem um único filho e que esse filho moçambicano vai trabalhar nas minas lá na África do Sul e volta contaminado de AIDS e contamina as suas oito mulheres, e os filhos dessas mulheres ficam com sua mãe que é uma anciã, e quando a mãe Elisa, a vovó Eliza pergunta: quando eu morrer quem vai cuidar deles? Não é um momento, é uma constatação. E eu acho que esse filme nos possibilita discutir tanto… primeiro: desmistificar essa questão da AIDS e obviamente repensar a importância do cuidado, mas para além disso, estamos falando de uma avó que acolhe, de uma avó preocupada com o futuro de cada um desses netos e que também é outra realidade brasileira e a Covid traz isso, são quase 700 mil pessoas que foram dizimadas neste país, e com quem estão os órfãos da Covid, por exemplo. É algo para a gente pensar neste momento, que família não perdeu uma pessoa querida? Porque são quase 700 mil mortos oficialmente, e os que morreram de sequelas da Covid? Então, eu não tenho dúvidas do quanto que o audiovisual tem essa importância de sensibilizar, de nos fazer pensar… claro que sensibilidade também é um privilégio de poucos, nem todos têm essa capacidade de ver, olhar, e sentir… estou falando aqui com pessoas privilegiadas e tenho certeza de que quem nos ouve também são pessoas privilegiadas. Passou da hora da gente ganhar as pessoas pelo afeto, é preciso afetar da forma mais positiva possível, é preciso abraçar, é preciso compreender o outro, é preciso querer e trabalhar para o mundo melhor.
Juliana: Eu lembrei muito da questão do apelo universal, e você está querendo produzir um filme mesmo que seja produção independente precisa de recursos, precisa de financiamento e muitas vezes quem detém esses recursos… uma barreira que eles colocam apelo universal mas eu diria que esse filme apesar de estar localizado ser de Moçambique, consegue trazer elementos que podem fazer associações com outras realidades e eu queria te perguntar se o cinema negro em geral, a gente pode pensar nessa perspectiva também de algo que parte de um grupo que é majoritário no Brasil, mas é um grupo específico que tem essa cultura, que tem elementos próprios, mas que consegue alcançar a universal e comunica com todo mundo também.
Edileuza: Não tenho dúvidas Ju. Primeiro porque eu não estou falando de minoria, eu estou falando de 54% da população brasileira, então de cara eu já estou falando para a maioria, e segundo que quando você se vê representado ou representada nas telas.
Valdirene Assis: A questão da representatividade é muito importante na vida do negro e da negra desde sempre e o estatuto da Igualdade Racial no segmento audiovisual precisam respeitar a história, a cultura afro-brasileira, essa pouca importância que se dá ao Estatuto da Igualdade Racial é um reflexo da pouca importância que se dá a tudo que diga respeito a população negra.
Edileuza: Eu acho que isso é muito, porque o cinema branco nunca precisou ser intitulado de branco, ele sempre foi branco e ponto final. A protagonista é branca, o protagonista é branco, o diretor, a diretora é branco, o roteirista é branco, a equipe é branca, a história é branca e é cinema, e aí quando a gente está fazendo cinema vem um monte de adjetivos para a linguagem, a estética e isso e aquilo… assim, para não se tornar de fora desse lugar. E aí eu penso, que a PAN, a Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro que nasce em 2016 com pouco mais de 20 pessoas e hoje são mais de mil associados no Brasil inteiro, ela vem em um sentido muito importante que é pensar esse cinema negro como uma nova linguagem, uma nova estética, Zózimo Bulbul que é considerado o pai do cinema negro brasileiro já trazia isso, Alma no Olho que é um filme de 1974 já traz uma outra estética pensando em Ousmane Sembène no continente africano que teve toda sua formação na França mas quando ele volta e diz: eu estou fazendo cinema africano. Porque antes dele todo cinema africano era feito pelos brancos, com história dos brancos, e aí o Ousmane vem para fazer cinema a partir de uma outra ótica, e esse olhar, esse cuidado que ele traz para suas histórias… são histórias que sensibiliza todo mundo porque que A Negra de… que é um filme de 1954, se não me engano, é um filme que incomoda tanto porque é um filme de uma mulher negra que sai do continente africano com a promessa de que vai trabalhar como babá em Paris, e quando ela chega na casa dessa família se torna uma prisioneira, sem salário porque ela precisa pagar a passagem que até então não estava posto, comendo o resto daquela família, sem lugar apropriado para morar… porque será que esse filme incomoda tanto? E eu estou falando de um filme de 1954 que é extremamente atual, então sem dúvida é um cinema que causa estranhamento, que causa incômodo… mas eu não tenho dúvida também que é um cinema que traz o seu lugar do afeto, e eu acho que não só essas duas animações que a gente está trazendo aqui mas tanto os filmes do cinema negro, do cinema negro feminino, desse cinema negro de animação que nos cativa pelo afeto, eu lembro por exemplo, de Kiriku que é um filme de 1990.
Kiriku: Eu me chamo Kiriku, mãe me lave.
Mãe de Kiriku: Uma criança que nasce sozinha se lava sozinha. Não gaste muita água, Karabá, a feiticeira secou a nossa fonte.
Kiriku: Mãe, cadê o meu pai? Ele foi lutar contra a Karabá, a feiticeira. E ela o comeu.
Kiriku: Mãe, cadê os irmãos do meu pai?
Mãe de Kiriku: Eles foram combater Karabá, a feiticeira. E ela os comeu.
Kiriku: Mãe, cadê os irmãos da minha mãe?
Mãe de Kiriku: Eles foram combater Karabá, a feiticeira. E ela os comeu. Só restou o mais jovem.
Kiriku: Onde ele está?
Mãe de Kiriku: Na estrada dos flamboyants, para combater Karabá, a feiticeira.
Kiriku: Então eu devo ajudá-lo… bom dia meu tio, eu sou Kiriku, o seu sobrinho.
Tio de Kiriku: Você não é meu sobrinho. Acabo de ver minha irmã e ela ainda não havia dado à luz.
Kiriku: É verdade, sou eu. E vim ajudá-lo a combater Karabá, a feiticeira.
Tio de Kiriku: Ah, não fale bobagens. Você não pode me acompanhar, desapareça baixinho… ele entendeu. Mas de onde vem essa criança minúscula que corre tão rápido.
Edileuza: Passar esse filme nas escolas… as crianças negras, mas também as crianças brancas queriam ser Kiriku. É um filme que certamente vocês devem ter visto em algum momento de suas infâncias, que é um filme que olha para o outro com dignidade, sabe. O audiovisual tem essa pegada, de nos afetar, de nos conquistar, de chamar para a responsabilidade.
Leyberson: Eu ia pedir para você dar dicas de alguns filmes que fizessem exatamente esse afeto, mas como você já adiantou, vou te pedir dicas agora de leituras críticas nesse momento em específico.
Edileuza: Eu acho que para um bom começo é ler a coleção Negritude, Cinema e Educação. Mas eu acho também que esses livros que a gente citou no início do programa: Cinema Negro Baiano, da Jamile e Cintia, como organizadora. O livro da Renata, Empoderadas, Narrativas Incontidas do Audiovisual Brasileiro, eu acho que é um bom começo. E se puderem também ler esses artigos que foi o que motivou esse Podcast, Mãe dos Netos, que está disponível na plataforma da Socine, e o Òpárá de Òsùn, eu acho que ele não está disponível, mas ele foi publicado na Conferência de Cinema de Avanca, em Portugal.
Juliana: Eu queria na verdade abrir o microfone para Edileuza, se teve alguma coisa que a gente não perguntou de importante para você compartilhar aqui com a gente? E se você já quiser se despedir.
Edileuza: Eu queria agradecer o convite, agradecer os ouvintes, vida longa ao Podcast, e é isso. Assim, eu acho que eu sempre digo: assista filmes com os seus amores, convidem seus amores para assistirem Òpárá de Òsùn, para assistirem Mãe dos Netos, para assistirem A Negra de… e tantos outros. Filmes, assistam filmes, e convidem seus amores para verem filmes do cinema negro e do cinema negro feminino. Gratidão pelo convite e convidem mais vezes, que vai ser uma alegria estar aqui.
Leyberson: E a gente encerra o episódio avisando que o Dazumana está no Youtube e em várias plataformas de Podcast… Spotify, Google Podcast e iTunes. Em 15 dias a gente volta com um novo episódio, e se vocês quiserem enviar sugestões ou perguntar alguma coisa para a Edileuza que a gente não perguntou aqui nosso e-mail é voz@dazumana.com.
Juliana: Esse projeto é realizado com recursos do Fundo de Apoio à Cultura do DF. É isso, até a próxima. Dazumana, a ciência sem jaleco.
00:00 - BLOCO 1: BAGAGEM ACUMULADA COM FILMES
Experiência na produção e na pesquisa
Professora e filme como instrumento didático
Implementação da lei 10.639/2003
Coleção negritude, cinema e educação
Dogma Feijoada
12:55 - BLOCO 2: CURTA SOBRE ÒSÙN
Òpárá de Òsùn: quando tudo nasce de Pâmela Peregrino
Animação Negra
Imaginário positivo
Bioma e direção de arte
Filme coletivo
17:53 - BLOCO 3: PRODUÇÃO E FRUIÇÃO DA OBRA
Dicas e puxões de orelhas para produtores
Comunicação africana, por Narcimária Correia do Patrocínio Luz
Respeito às religiosidades africanas
Lenda vs Mito
Impacto no público infantojuvenil
24:11 - BLOCO 4: REPRESENTATIVIDADE NO AUDIOVISUAL
Quase 20 anos da lei 10.639/2003
O ensino atual é branco
Quotas
Audiovisual com olhares afetivos
Mãe dos netos de Isabel Noronha e Vivian Altman
Paralelo com a Covid 19
Apelo universal
Alma no Olho do Zózimo Bulbul
A Negra de... de Osmane Sembène Kiriku e a Feiticeira de Michel Ocelot
Dicas de leitura
"Candomblé e Cinema de Animação: Estratégias de resistência e territorialidade",
Artigo de Pâmela Peregrin e Edileuza Penha de Souza -
'Mãe dos netos' Afeto, memória e identidade no cinema"
Artigo de Edileuza Penha de Souza (página 305)
"Coleção negritude, cinema e educação - Vol.1"Livro de Edileuza Penha de Souza
Entrevistado: Edileuza Penha de Souza
Pesquisa e locução: Leyberson Pedrosa e Juliana Mendes
Gestão e Produção executiva: Carolina Villalobos
Redes sociais: Gabriella da Costa
Montagem: Juliana Mendes
Edição: Thais Rodrigues
Site: Vinicius Cortez
Desgin gráfico: Diana Salu
Ilustração: Juliana Mendes
Transcrição: Audiotext
CRÉDITOS:
Trilha sonora em CC - Little hymn de Stefan Kartenberg (http://ccmixter.org/files/JeffSpeed68/61297)
Efeitos sonoros - Audio Library do YouTube (https://www.youtube.com/audiolibrary)
Vídeo 1 (comentário): Itaú Cultural - Joel Zito Araújo – Diálogos Ausentes (2016)(https://youtu.be/BZ1z6KSeBfU)
Vídeo 2 (comentário): Jessica Gonçalves - Jeferson De fala sobre os 07 mandamentos do Dogma Feijoada (https://youtu.be/VBWqn8e-7HY)
Vídeo 3 (comentário): Abassá da Deusa Òsùn - Orixá OXUM Animação: "Òpárá de Òsùn: quando tudo nasce" (https://youtu.be/G9oueZFnNB8)
Vídeo 4 (comentário): Ceveró - Filme "Mãe dos Netos" (https://youtu.be/GwV0TVKQOnA)
Vídeo 5 (comentário): Canal Preto - Falta REPRESENTATIVIDADE NEGRA na TV! - Canal Preto (https://youtu.be/9MhGeefxV7c)
Vídeo 6 (comentário): Resistência du Gueto Oficial - Kiriku e a Feiticeira (https://youtu.be/vm18em5G6M0)